quarta-feira, 24 de março de 2010

Um projeto de combate ao racismo



Assim era um dia comum no CMEB Mário Leal Silva, em Guaraná, distrito de 7 mil habitantes do município de Aracruz, a 66 quilômetros de Vitória. Uma funcionária vê o trabalho de outra e dispara: "Mas isso parece serviço de preto!" Ao chegar à escola, uma aluna da Educação Infantil ouve o comentário de uma monitora: "Ela é escurinha, mas é tão engraçadinha!" Já em sala de aula, dois alunos discutem e um deles não hesita: "Professora! Manda esse ‘macaco’ parar senão eu vou bater nele!" Embora atenda cerca de 700 alunos que vivem em uma comunidade onde aproximadamente 50% da população é afrodescendente, a falta de respeito com as crianças negras e pardas era flagrante na CMEB Mário Leal Silva. E isso se refletia na aprendizagem, pois eram essas mesmas crianças as que mais apareciam nos índices de reprovação (7,39%) e de distorção idade-série (20%).

Ao assumir a direção em 2008 e se deparar com essa realidade de preconceito, a diretora, Mônica Andréa Porto Louvem, decidiu enfrentar o problema. Até então, o tema "identidade racial" aparecia apenas como parte do conteúdo das aulas de História afrobrasileira para atender às determinações da Lei 10.639/2003. "A cultura negra, por exemplo, só era trabalhada no 13 de Maio", relata Mônica, referindo-se à data comemorativa da libertação dos escravos. Para combater o racismo, ela criou um projeto que envolveu toda a comunidade (leia a íntegra do trabalho).

Segundo Demétrio Magnoli, sociólogo e doutor em Geografia Humana, o fim de atitudes preconceituosas só é possível quando se desfaz a ideia de ‘raça’: "As raças foram nomeadas com base em conhecimentos falsos para atribuir poderes a alguns grupos. Aceitar nossa mistura e entender a diversidade com base na miscigenação e não pela segregação é algo crucial para a desconstrução do pensamento racista. E a escola é um pilar fundamental para promover essa mudança na sociedade. O ideal, quando esse tema é debatido, é falar em ancestralidade".

Novas regras de convívio para combater a impunidade
CULTURA EXPOSTA Murais pela escola mostravam as influências de várias culturas no BrasilRealizar um projeto na escola para enfrentar questões relacionadas a valores e atitudes não é simples, pois envolve o trabalho com as regras do convívio escolar e a articulação de muitas atividades. Em Aracruz, era preciso desencadear ações nas reuniões com professores, funcionários, alunos e pais, redefinir conteúdos curriculares para explorar na sala de aula e estabelecer formas concretas para lidar com as questões (regras, registros e conversas entre partes envolvidas em conflitos). Tudo para construir um ambiente de conscientização sobre os malefícios causados pela discriminação. Mais do que isso, era essencial fazer do espaço um ambiente no qual o racismo não fosse tratado de forma impune e onde fossem realizadas diariamente ações para que houvesse o entendimento do problema. Uma das preocupações era fazer com que cada um compreendesse a questão do ponto de vista de quem sofre o preconceito para com isso poder refletir sobre as posições tomadas e as opções feitas no dia a dia, no convívio com os colegas.

O primeiro passo para a implantação do projeto Diversidade, Sim! Desigualdade, Não! Conhecendo, Percebendo e Valorizando a Identidade Étnico-Racial no Cotidiano da Escola foi elaborar um diagnóstico detalhado da situação para, então, inserir as questões de respeito no projeto pedagógico. Essa análise foi importante para socializar as informações sobre a questão com toda a equipe.


ÁFRICA EM NÓS Elementos da tradição e palavras africanas foram expostos para toda a escolaAs discussões começaram em uma das reuniões semanais que a diretora organiza com toda a equipe pedagógica. Mônica apresentou dados sobre o perfil dos estudantes, assim como a descrição de atitudes preconceituosas que haviam sido observadas no cotidiano escolar. Os docentes responderam a um questionário, que forneceu pistas importantes sobre a necessidade de transformar a escola em um espaço de luta contra a discriminação. Após a análise das informações, começaram os encontros para discutir como a instituição lidava e como deveria tratar a questão racial.

Nos encontros periódicos da equipe gestora, ficou decidido que tanto alunos como funcionários deveriam desenvolver a compreensão histórica e cultural sobre a diversidade étnica. Foi pensado também em como seria feita a sistematização das ações e a sensibilização do Conselho Escolar. "Estimulamos o diálogo, a observação e a reflexão sobre as atitudes preconceituosas na escola."

Em alguns momentos, foi preciso chamar a atenção de colegas que nem sequer percebiam como tinham discursos discriminatórios. "Hoje, essa cultura de observação está já instaurada na escola e avançamos muito nas questões pedagógicas. O problema do racismo, porém, envolve uma construção constante", observa a diretora. Esse é um dos pontos de maior importância: a permanência da cultura do respeito.

"Em um trabalho em que o objetivo é mudar formas de comportamento e valores, é preciso manter o assunto aquecido durante todo o ano, as ações ocorrendo e as informações circulando. Esse é um dos méritos desse projeto", afirma Ana Amélia Inoue, selecionadora do Prêmio Victor Civita Educador Nota 10. "O trabalho transformou atitudes preconceituosas em diálogos de respeito. E por isso ele é permanente", observa Mônica, a diretora.


REFERÊNCIA:

NADAI, Paula. Um projeto de combate ao racismo. Disponível em: . Acesso em: 18 mar. 2010.

2 comentários:

  1. Postei este artigo( um projeto de combate ao racismo), por que achei
    muito interessante a atitude da diretora Mônica. Ao invés de se conformar com a
    situação e achar que o preconceito racial existente entre seus alunos era uma
    coisa comum, ela trabalhou de maneira responsável esta situação.

    O que muitas escolas precisam é
    de dar apenas o primeiro passo, e esse passo inicial não precisa ser da
    diretora, mas de qualquer outra pessoa, pode ser alguém da comunidade, ou algum
    ser que trabalhe nas dependências da escola, dos professores...

    É muito comum, encontrar casos em
    que a professora tem certa deficiência em amar ou tratar um aluno por que ele
    tem a pele escura. Porém, aproveitando o ensejo, vou relatar uma história que
    aconteceu entre uma criança de dez anos e uma professora negra.

    A criança por “herança” (se assim
    posso dizer) da sociedade e/ou da bisavó tem um preconceito racial. Saiu de uma
    escola particular, para outra. Chegando lá, se deparou com uma professora
    negra. A criança passou o ano todo tirando notas baixíssimas, prejudicando-se
    em todas as disciplinas. A família nunca desenvolveu nenhum trabalho que
    dissesse para criança que aquela atitude era errada. Como a família é de classe
    média, teve condições de pagar a uma professora – de pele clara – para dar
    reforço escolar, e depois de várias recuperações e provas finais, a criança
    passou de ano e nada com relação ao preconceito foi feito.

    Este ano a criança foi estudar
    numa escola em outro município. A escola não trabalha com este tipo de assunto
    com seus alunos, também. Se nada for feito para que esta criança acabe com este
    preconceito racial, ela irá crescer sendo uma pessoa agressiva e ignorante às
    diversidades que ela se deparar.

    Acredito que quando se trata da
    educação de um ser, escola e família têm que se tornar uma só instituição.
    Alguém tem que dar o primeiro passo!

    Rebeca Ferraz.

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  2. Ótima reportagem, Rebeca, porque mostra uma intervenção de sucesso, abrangendo toda a escola e o currículo.
    A história da criança racista que se depara com uma professora negra é bem interessante. Precisamos ter mais professoras e outros/as profissionais negros/as, para superar a posição subalterna dos afrodescendentes no Brasil. E isso se faz através da educação escolar.
    Maria Eulina

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